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"Armas de fogo e legítima defesa"
Autor: Luiz Guilherme Prado Souza Leal
Bacharel em Direito
Analista de Inteligência Empresarial
Instrutor de Direito Penal e de Armamento e Tiro para cursos de formação de vigilantes
Imaginemos a seguinte situação:
Você está dirigindo seu carro, tranquilamente, da mesma maneira que faz há anos, por uma estrada boa, respeitando o limite de velocidade, tempo bom, pista dupla. Eis que de repente, ao entrar em uma curva para direita, o seu carro "saí de traseira" repentinamente, você, num ato reflexo, "dá o contra" com o volante, para a esquerda, recupera o controle do veículo, e só depois de um tempo consegue assimilar o que ocorreu, e fica se perguntando como conseguiu fazer aquilo, sem ao menos pensar.
Isto se deve ao fato de que seu cérebro respondeu a ameaça de maneira automática, inconsciente, da forma que foi armazenada durante anos e anos de aprendizado enquanto você dirigia, passava por situações difíceis, se safando, ou às vezes até mesmo se envolvendo em acidentes, quando ainda não tinha tanto tempo de habilitação, sem ter podido acumular experiência suficiente, mas tudo isso serviu de aprendizado.
Por que estou tocando neste assunto?
Por que vejo várias pessoas comentando sobre o uso ou não de armas de fogo na defesa da própria vida, ou de entes queridos, sem, no entanto se darem conta que para isto, assim como sair de uma situação de risco com um veículo, exige não só aprendizado, mas uma enorme preparação mental, para que a resposta entre no subconsciente,e ao sinal de ameaça, você possa agira de forma autômata, sem precisar pensar, o que poderia lhe roubar precioso segundos, e até mesmo ser fatal.
Muitos dirão que isto é simples, é só treinar e pronto. Não é?
Para estes eu digo que é e não é, ao mesmo tempo! Os americanos, fanáticos por números, indicadores, estatísticas e por darem nome para quase tudo, criaram um termo para este tipo de preparação, que ficou designada como "Mental Preparedness".
Traduzindo em miúdos, não adianta o corpo estar treinado se o cérebro não estiver programado para acompanhar o físico, se você não tiver uma atitude firme e decidida, atitude esta que deve ser inicializada muito antes de qualquer combate, quando as dúvidas que porventura possam surgir na hora decisiva já estejam dirimidas e o seu modo de agir já definido.
O Ten.Cel. do exército americano Dave Grossman trás em seu livro "Matar – Um estudo sobre o ato de matar" intrigantes dados correlacionados entre o tipo de treinamento ao qual o instruendo é submetido com o desempenho em combate. Não são apenas dados do tipo pouco treinamento de tiro, baixo índice de acerto, mas algo que vai além, como um treinamento de tiro que seja feito somente com silhuetas de papel, o instruendo terá enorme dificuldade em efetuar disparos contra seres humanos em situação de combate, fato este sobejamente demonstrado nas estatísticas de soldados que declararam terem disparados suas armas a esmo na 2ª. Guerra na ordem de quase 80%, e no Vietnam este número ter caído drasticamente para menos de 8%, fruto do desenvolvimento de novas técnicas de adestramento, voltadas para a desumanização dos inimigos.
O que isto tem a ver com o dia-a-dia de uma pessoa que resolva portar uma arma de fogo, seja pelo trabalho por ela desempenhado ou simplesmente por uma decisão de poder exercer a legítima defesa quando ameaçada for?
Desde que nascemos somos ensinados que devemos amar o próximo, não fazer com outro o que não queremos que não façam conosco, além de medidas coercitivas de cunho social, como a reprovação dos integrantes do meio em que vivemos contra indivíduos que exerçam a violência, bem como as medidas coercitivas de cunho legal, pois o cidadão de bem não quer ir para a prisão e deixar a família desamparada durante a sua privação de liberdade.
O uso de uma arma de fogo, ainda que em uma situação de estrito cumprimento do dever legal, ou exercício de legítima defesa incorre em vários destes questionamentos, bem como o efeito do transtorno de stress pós-traumático, ou PTSD, sigla em inglês para Pos-Traumatic Stress Disorder, onde o autor pode desenvolver uma série de patologias ligadas a situação de enorme stress que é uma situação de combate, bem como a reprovação no meio social de sua atitude, ou questionamentos internos, por ter atirado em alguém, ou mesmo matado uma pessoa, ainda que esta pessoa o estivesse atacando.
Ou seja, antes mesmo de disparar a arma, o cérebro já tem de começara ser preparado para tal atitude, pois é uma decisão que implicará em uma série de fatores caso um dia chegue à hora de usá-la. Ouso dizer que é melhor ter em mente as respostas de tais questionamentos antes mesmo de decidir comprar a arma.
A desumanização do oponente, vistas muitas vezes no meio policial, como por exemplo o comentário de que "Bandido bom é bandido morto" nada mais é do que a tentativa de driblar as convenções do cérebro, de que aquele indivíduo não é humano, assim como o bandido vê a vitima como uma fonte de renda fácil, ou mesmo como responsável por ele não ter tido melhores oportunidades na vida.
Esta atitude de desumanizar o lado oposto é que vai permitir que aquele que deixar de lado todas as medidas coercitivas e só tiver em mente a sobrevivência sua e de sua prole, desenvolverá o mais alto grau de violência para sair vitorioso no combate. Na hora em que sua vida está em risco, o bandido não pensa em quantos anos ele vai ficar preso, ou irá deixar uma família sem esteio, assim como um cidadão ou policial reagindo a uma ameaça não deve e não pode pensar que só deve executar um número X de disparos sob pena de ser condenado por uso excessivo da força ou excesso de legítima defesa. Naquele momento, a única coisa importante é sair vivo.
O Sargento do Exército Americano David Bellavia, autor do livro "De casa em casa em Fallujah", relata um combate que teve com um insurgente, dentro de uma casa, onde já sem munição, travou um combate de mãos-limpas, e que em determinado momento teve que apertar o globo ocular do oponente para dentro, com o polegar e em seguida tentou esmagar sua glote com as mãos, e que neste momento sentiu que toda a humanidade havia esvaído do seu corpo, restando apenas um animal lutando, como se fosse para definir quem era o macho Alfa.
Se por algum momento, ao ler estas palavras, surgiram dúvidas ou repulsa em sua cabeça, eu sugiro fortemente que reveja seus posicionamentos, antes de continuar a portar uma arma ou mesmo a decisão de comprar uma.
O remorso, mesmo de uma ação de legítima defesa bem sucedida, pode ter conseqüências devastadoras na vida de um ser humano, pois aquele que sobreviveu terá até o fim de seus dias para se questionar, e é uma patologia que pode vir a se manifestar muito tempo depois do fato, ou exposição. Imagine um cidadão, que ao reagir a um ataque, feriu e matou um transeunte inocente?
Lembro-me de um caso, envolvendo um vigilante ferroviário, que fora rendido por três bandidos, e após ser rendido, teve o radiocomunicador furtado e foi algemado embaixo de uma composição férrea que estava para sair, e que iria esmagá-lo, e que por sorte, moradores da beira-linha o viram e avisaram o maquinista, que não partiu com o trem.
O vigilante, após ser solto e passado por consulta médica, voltou ao trabalho três dias depois, porém cerca de quinze dias seguintes ao evento, passou a apresentar síndrome do pânico, em um caso claro de PTSD, não conseguindo mais trabalhar e por fim, sendo aposentado por invalidez, após perícia médica, em face de graves problemas psiquiátricos que afloraram, sendo confirmado a PTSD.
Aí vem o paradoxo, como fazer um exame psicotécnico que possa determinar se o paciente é portador de uma violência "boa" por assim dizer, utilizável somente quando ameaçado, ou se é um sociopata, que sempre vai usar uma violência desmedida? Caso alguém saiba a resposta, ficaria feliz que a compartilhasse comigo.
A escritora Amanda Ripley, no livro "Impensável", relata vários casos de pessoas treinadas que sucumbiram em acidentes considerados simples, por inércia ou falta de vontade de agir, bem como diversas pessoas sem o devido treinamento, que se salvaram ou lograra êxito em salvar outras, mas tiveram atitude, mesmo estando em catástrofes como, por exemplo, o ataque ao World Trade Center ou à escola Virginia Tech.
Neste mesmo livro tem um depoimento do famoso oficial de polícia de Nova York e instrutor de tiro, Jim Cirillo, que conta como foi a sua primeira troca de tiro, em uma loja de bebidas, e que quando viu que a situação iria ter como desfecho um tiroteio, relata a lembrança que um dos bandidos estava com uma coisa branca na mão, que ele ingenuamente achou ser um lenço, que estava se rendendo, mas que ainda assim, inconscientemente, efetuou dois disparos no mesmo, somente depois, quando findado o tiroteio, é que viu que não era um lenço, mas sim um revólver, atribuindo os disparos ao fato de que seu cérebro identificou a ameaça e fez o que tinha de ser feito, sem ele nem precisar pensar, devido ao s anos de condicionamento mental que já possuía.
Conta ainda, em detalhes, as reações do corpo ao alto nível de stress, como a visão em túnel, o tempo expandido, onde o tiroteio parece ter ocorrido em câmera lenta, como a maioria das pessoas que passaram por este tipo de experiência relatam, inclusos aí o flash-back da vida inteira, que passa na frente dos olhos em segundos, indo até a perda do controle do tônus muscular, podendo urinar ou defecar nas calças, uma vez que o cérebro, diante de uma sobrecarga de informações, "desliga" determinadas funções e direciona todas as suas forças para reagir, sair da situação e sobreviver.
Então respondendo a pergunta do início de texto, é só treinar, e pronto?
Não, não é só treinar. Treinar o corpo é relativamente fácil, mas a mente, que vai comandar, é que precisa ser treinada e preparada, não só a sua, mas também das pessoas que o cercam e possam estar com você em uma situação de risco.
Imagine você realizando um exercício relativamente simples, um "Mozambique Drill", a cerca de cinco metros de distância.
Em um primeiro momento, você está no stand, durante o dia, equipado com óculos, protetor de ouvidos, coldre e carregadores em local de fácil acesso, o RO (Range Officer, um tipo de juiz das provas de tiro) ainda lhe pergunta se você está pronto, e a sua única preocupação é a de escutar o beep do timer e resolver a pista no menor tempo possível.
Agora o cenário muda um pouco, você está no carro, cinto de segurança afivelado, esposa ao seu lado, filho no banco de trás, a arma está no coldre, por debaixo da camisa, pois o porte não pode ser ostensivo, já é noite, vocês voltando de uma consulta no hospital, face a febre do pequeno que não cede, cabeça cheia, preocupado, um sinal de trânsito mal iluminado, carros passando na pista contrária.
Sem motivo aparente ou sinal anterior, dois bandidos vêm em sua direção, um com a arma em punho, e acaba de efetuar dois disparos de intimidação, adrenalina começa a ser despejada aos cântaros na corrente sanguínea, efeito flask-back na cabeça, coração saindo pela boca em sua direção e o efeito surpresa já era, pois sua esposa grita em altos brados para você não atirar...
Se você não adotou uma conduta preventiva, para mitigar os riscos de tal situação materializar-se, não discutiu com sua esposa a decisão de andar armado e reagir, sabendo que em 99% dos casos, se você estiver armado e não reagir, os bandidos vão lhe matar, neste momento, qual deve ser a sua única preocupação?
Desculpe-me em ser arrogante em lhe dizer que se existe alguma dúvida em reagir ou não, o que a imprensa irá noticiar, ou o quanto vai ser gasto com advogados depois, se deveria ou não ter reagido, etc..., não são nestes milissegundos que tais dúvidas serão respondidas.
O seu foco e única preocupação será o de sair vivo e proteger quem está com você, não importa como nem o que deverá ser feito, é a sua sobrevivência que depende disso. Quem está vindo contra você não tem escrúpulos ou liga se você vai continuar vivo ou não, aleijado ou viúvo!
Quer ter uma idéia do teu desempenho nesta situação? Arranje um vídeo-game, destes modernos, e ligue na sala, dia de domingo, após o almoço, com bastante criança em casa, todas querendo jogar, coloque um jogo de tiro em 1ª. pessoa e veja o teu percentual de acerto com a atormentação ambiente fazendo efeito...
Uma dica, o pessoal do FBI, que tem qualificação de tiro obrigatória a cada 3 meses, dão mais de 3.500 disparos no curso de formação, tem munição a vontade para treinar, em situação de combate tem uma média de 13% de acertos!
Treino simples: alguém por acaso já efetuou disparos com as mãos previamente "untadas" com catchup para simular a empunhadura da arma com as mãos sujas de sangue? Ou o disparo em double-tap's a curta distância, não mais que 3-4 metros, após correr 15 metros, simulando um tentativa de fuga? Usou fogos de artifício para simular disparos contrários?
A situação na vida real não é uma situação onde você possa "repetir a pista" e tentar melhorar o tempo, ou a precisão.
Sua vida, ou de quem você ama já pode ter sido ceifada, lembrando que mesmo em uma reação bem sucedida tais efeitos colaterais podem ocorrer.
Não quero ser alarmista, muito menos parecer e falar como um desarmamentista, mas o amigo não é aquele que passa a mão em nossas cabeças nos momentos difíceis, mas sim aquele que abre nossos olhos, evitando que estes ocorram.
Antes de tudo, lembre-se, sua mente é a sua melhor arma!
STAY SAFE!
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