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Trabalho Policial

"Não espere reconhecimento, simplesmente faça seu trabalho!"

Autor: Dave Grossman with Loren W. Christensen.
Tradução: APF Herald Tabosa de Cordova, DPF/DF.

 


O GOSTO DA FUNÇÃO POLICIAL


O Distrito estava um alvoroço com muitas risadas e piadas devido ao fato de que os novos policiais, incluindo eu, estariam chegando hoje às ruas pela primeira vez. Após meses de uma quantidade sem fim de aulas, provas, trabalhos e seminários, nós finalmente havíamos concluído a academia de polícia e estávamos prontos para integrarmos o efetivo de nossa lotação.

Tudo o que se via eram filas de “novinhos” com sorrisos imensos e portando seus brilhantes distintivos policiais. Encontrávamo-nos na sala de reuniões e mal podíamos nos manter sentados tal a ansiedade para que chegasse logo nossa vez de sermos apresentados e recebermos nossas atribuições ou, para os não iniciados, nossa própria porção da cidade para servir e proteger.

Foi então que ele adentrou no recinto. Um “armário” de elevada estatura e musculatura ainda definida, tinha os cabelos grisalhos e olhar tão duro e frio que provocava um certo nervosismo, mesmo se não estivesse olhando diretamente para você. Sua reputação era a de ser o mais experimentado policial que já trabalhou em nossa cidade. Tinha sido do departamento por mais tempo que qualquer um podia se lembrar e aqueles anos todos de serviço o tinham tornado uma verdadeira lenda.

Os novos policiais, ou “novinhos”, como ele nos chamava, tanto o respeitavam como temiam. Quando ele falava, mesmo os policiais mais experientes prestavam atenção. Era um grande privilégio um dos novinhos estar por perto quando ele contava as histórias dos velhos tempos. Mas sabíamos nossos lugares e nunca o interrompíamos por medo de sermos  expulsos da roda. Ele era respeitado e reverenciado por todos que o conheciam.

Até depois do meu primeiro ano no departamento, ainda não o tinha visto se dirigir e falar com nenhum dos novinhos por muito tempo. Quando falava, tudo o que dizia era: “Então, você quer ser um policial, não é mesmo, herói?” Eu lhe direi o que isso representa, quando você puder me dizer que “gosto” isso tem. Então você poderá se considerar um policial de verdade.”

Ouvi essa frase peculiar algumas dezenas de vezes. Eu e meus parceiros todos tínhamos nossos palpites sobre o que realmente significaria aquele papo de que “gosto” teria a profissão de policial. Alguns acreditavam ser o gosto do nosso próprio sangue após um confronto mais acirrado. Outros pensavam que seria o gosto do suor após um longo dia de trabalho. Tendo enfim completando um ano no departamento, achava que já sabia tudo o que precisava saber.

Então uma tarde, reuni coragem e me dirigi a ele. Quando olhou para mim lhe disse: “Quer saber de uma coisa, acho que já mereço reconhecimento. Estive numa porção de confrontos, fiz um monte de prisões e suei minha camisa como todo mundo por aqui. Portanto, o que significa aquela charada que você vive dizendo?” Com isso, ele simplesmente respondeu: “Bem, tendo em vista o que disse ter feito, diga você qual significado ela tem, herói”. Então, como não tive resposta, ele balançou a cabeça e grasnou: novinhos! E foi embora.

A noite seguinte foi a pior até hoje. Começou calma, mas com o passar do tempo as ocorrências foram ficando mais e mais freqüentes e perigosas. Fiz algumas pequenas abordagens e então uma delas se arrastou para uma luta, mas acabei concluindo a prisão sem ferimentos maiores no suspeito ou em mim mesmo. Após isso, eu estava louco para encerrar meu plantão e tomar o rumo de casa e ter finalmente com minha filha e esposa.

Tinha acabado de dar uma olhada no relógio e faltavam cinco minutos para eu me mandar para casa. Não sei se foi o cansaço ou foi minha imaginação, mas quando me dirigi a uma rua mais abaixo na minha área de patrulha, achei que tinha visto minha filha no portão de uma das residências dali. Olhei novamente e vi que não era minha filha, mas uma outra criança mais ou menos de sua idade. Tinha provavelmente uns seis ou sete anos e vestia uma camiseta de adulto que batia nos seus pés. Segurava uma boneca de pano nos braços que parecia ser mais velha que eu.

Imediatamente parei a viatura para ver o que ela fazia sozinha fora de casa àquela hora da noite. Quando me aproximei, notei um leve sinal de alívio em seu pequeno rosto. Tive de rir para mim mesmo, achando que ela via seu herói policial vindo salvá-la! Ajoelhei-me a seu lado e perguntei o que estava fazendo ali fora.

Então ela disse: “Mamãe e papai acabaram de ter uma grande briga e agora minha mãe não quer acordar”. Minha cabeça deu voltas. O que faço agora? Imediatamente chamei por reforços e corri para a janela mais próxima. Quando olhei para dentro vi um homem sobre uma mulher com as mãos cobertas de sangue, o sangue dela. Arrombei a porta e empurrei o homem para o lado e chequei a vítima. Não encontrei sinais vitais algum. Imediatamente algemei o suspeito e comecei a realizar RCP (ressuscitação cardio pulmonar) na mulher.

Foi quando ouvi uma vozinha atrás de mim: “Sr. Policial, por favor, faça minha mãe acordar”. Continuei a realizar RCP até que o reforço e a ambulância chegassem, mas então eles disseram que já era tarde demais. Ela estava morta. Olhei para o homem e ele disse: “Não sei o que aconteceu direito. Ela estava gritando comigo para eu parar de beber e procurar emprego e simplesmente não agüentei mais. Apenas a empurrei para que me deixasse em paz e ela caiu e bateu a cabeça.” Quando estava conduzindo o homem algemado para a viatura lá fora, avistei novamente a menina. Em cinco minutos eu tinha passado de herói a monstro. Não apenas fui incapaz de ressuscitar sua mãe e ainda estava levando seu pai embora também.

Antes de deixar o local, pensei que poderia falar com a criança para dizer-lhe algo, sei lá. Talvez apenas dizer-lhe que sentia muito sobre seus pais, mas quando tentei me aproximar ela se virou e percebi quão inútil seria aquilo tudo e que provavelmente ainda pioraria mais as coisas.

Mais tarde, sentado no vestiário da delegacia, continuei repassando toda aquela coisa na minha cabeça. Talvez se tivesse sido mais rápido ou feito algo diferente, aquela garotinha ainda teria sua mãe. E mesmo que isso pareça egoísta, eu ainda seria um herói... Foi quando senti uma pesada mão nos meus ombros e ouvi aquela tão familiar questão novamente: “Afinal, herói, que gosto tem?”

Antes que pudesse ficar indignado ou gritasse alguma resposta sarcástica, dei-me conta de que toda a emoção até então reprimida tinha transbordado a superfície e já havia uma cascata de lágrimas correndo no meu rosto. Foi naquele instante que me dei conta da resposta para aquela famosa questão: tinha gosto de lágrimas.

Com aquilo, ele começou a ir embora, mas parou e disse: “Saiba de uma coisa, não havia nada que você pudesse fazer diferente. Às vezes você pode fazer tudo certo e ainda assim o resultado ser o mesmo. Você pode não ser o herói que achou que era, mas agora você é um Policial de verdade”.


Testemunho citado no livro: “On Combat: The Psychology and Physiology of Deadly Conflict in War and in Peace ” by Dave Grossman with Loren W. Christensen.
Traduzido pelo APF Herald Tabosa de Cordova, DPF/DF.

 

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